A inserção de João Simões Lopes Neto no sistema literário nacional dá-se a partir da publicação, em 1912, de Contos Gauchescos por Echenique & Cia. O autor, porém, não era novato no campo literário e cultural: tinha produzido peças de teatro, algumas delas impressas em tipografias locais; redigira artigos e matérias jornalísticas para jornais de Pelotas; e planejara Terra Gaúcha, de cunho histórico, e Artinha de Leitura, de teor didático. Em 1910, reunira o poemário popular do Rio Grande do Sul em Cancioneiro Guasca, livro que define sua assinatura artística, como evidencia O lunar de Sepé, em que reelabora a lenda de Sepé Tiaraju.
Contudo, a linha de corte é traçada por Contos Gauchescos, razão por que é a obra que receberá maior número de referências críticas, embora bastante incipientes à época em que vivia o escritor. No ano de lançamento do livro, Januário Coelho da Costa saúda seu aparecimento no Diário Popular, de Pelotas; e, em 1913, o Correio do Povo dá a palavra a Antônio Mariz, pseudônimo de José Paulo Ribeiro, para que aponte os méritos da coletânea de histórias narradas por Blau Nunes.
A fortuna crítica dos Contos Gauchescos e de seu parente próximo, as Lendas do Sul, em livro em 1913, foi irregular e descontínua nesses primeiros anos. Mas nem por isso a obra de Simões Lopes deixou de ser objeto dos intelectuais mais preparados do Estado. Em 1924, João Pinto da Silva, ao examiná-la na História literária do Rio Grande do Sul, considera seu “gauchismo” superior ao de Alcides Maya, ficcionista que, naquela década, gozava de grande prestígio local e nacional. Da sua parte, Augusto Meyer, que veio a ser o principal divulgador da obra de Simões, dedica-lhe resenha colocada no Correio do Povo, destacando a grandeza do escritor.
É em Prosa dos pagos, de 1943, que Meyer declara o entusiasmo motivado pelo talento do contador pelotense, relatando as impressões que nele causaram os primeiros contatos com a narrativa simoniana. E não se limita ao exame da obra enquanto bloco homogêneo, procurando, em capítulos específicos, sublinhar o valor de A Salamanca do Jarau e de O lunar de Sepé. Poucos anos depois, em 1950, Lúcia Miguel Pereira, então uma das mais renomadas pesquisadoras da literatura nacional, distingue a produção de João Simões, em Prosa de ficção, volume dedicado ao exame de autores brasileiros e de suas obras em circulação entre 1870 e 1920.
O lançamento, em 1949, da edição crítica dos Contos Gauchescos e Lendas do Sul provocou profunda alteração no que diz respeito ao conhecimento da obra do escritor sulino. Com preparação de texto por Aurélio Buarque de Holanda, prefácio de Augusto Meyer e posfácio de Carlos Reverbel, o livro fazia jus às virtudes do texto de Simões, propiciando-lhe a difusão de que até então carecia a matéria artística que o compunha.
Nas décadas subsequentes, os Contos Gauchescos, as Lendas do Sul e os Casos do Romualdo, resgatados esses por Carlos Reverbel, foram objeto de estudos por historiadores da literatura, como procederá Alfredo Bosi desde a primeira edição de sua História concisa da literatura brasileira, de 1970. Nesse, e em outros trabalhos do período, um foco predomina, quando se trata de entender a excelência de Simões Lopes: o Regionalismo.
Observe-se que o Regionalismo não é, ele mesmo, um problema. Considerado um período da história literária, corresponde a um tempo de grande produtividade, oportunizando a manifestação de escritores do porte de Afonso Arinos e Hugo de Carvalho Ramos, ficcionistas ao lado dos quais Simões Lopes Neto fica muito bem posicionado. Considerado, por outro lado, uma poética, o Regionalismo traduz aspectos fundantes da cultura nacional, razão por que repercute em épocas posteriores e em prosadores modernos, como Jorge Amado, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa.
Porém, encarar a obra de Simões Lopes Neto unicamente desde a perspectiva do Regionalismo talvez impeça o reconhecimento de toda sua riqueza e diversidade. Eis por que, ultrapassada a etapa de alinhamento de suas criações junto à dos maiores escritores brasileiros, emergiu a necessidade de resgatá-lo dos elos que o prendiam a um período histórico e a uma tendência temática e estilística. É o que se verifica nas distintas linhagens que se debruçam sobre sua obra: as que, dando sequência à atividade investigativa com fontes primárias, recuperam obras que permaneceram inéditas ou, impressas, tornaram-se raras e inatingíveis; as que relacionam as narrativas de Simões Lopes a questões suscitadas pela Teoria da Literatura; as que propõem a superação dos limites do Regionalismo por meio da identificação da universalidade dos temas que compõem o imaginário dos textos do autor; as que extravasam as fronteiras nacionais, apontando para a interação do escritor com a produção latino-americana e internacional.
A fecundidade artística da obra de Simões Lopes Neto estimula seus leitores a entendê-la, interpretá-la e valorizá-la. Esse é um caminho que os andarengos críticos, tal como o narrador dos Contos Gauchescos, ainda percorrerão por longo tempo.
Texto de Regina Zilberman para a exposição Simões Lopes Neto – onde não chega o olhar prossegue o pensamento (2016).
Cancioneiro Guasca
Em 1910, possivelmente no mês de agosto, vindo da impres-sora a vapor da Livraria Universal, de Echenique & C, de Pelotas, apareceu o Cancioneiro Guasca. Com 286 páginas, mais notas e índice, trazia o subtítulo Coletanea de Poezia Popular Rio-Grandense. Era mais do que poesia! Na obra, o autor incluiu as lendas do Negrinho do Pastoreio, da Mboitatá e a lenda missioneira do Generoso e alguns mitos do centro e norte do Brasil. As edições póstumas, de 1917 e 1928, pela mesma editora, não publicaram as lendas, mas trazem uma biografia do autor. A Editora Globo, de Porto Alegre, reeditou o livro em 1954 e 1960. E a Sulina, também da capital, em 1999. (FJLD)
Contos Gauchescos
Os contos de Simões Lopes Neto foram, em sua maioria, publicados, inicialmente, no jornal Diário Popular, de Pelotas, em 1911 e 1912. A única exceção é o conto Contrabandista publicado na edição nº 9 da Revista da Academia de Letras do Rio Grande do Sul (1911/1912), diferente do texto que logo depois constaria em livro. Em setembro de 1912, graças à louvável iniciativa de Guilherme Echenique, proprietário da Livraria Universal e amigo do escritor, os contos foram reunidos em livro, com a chancela da casa editorial pelotense. Já o conto O menininho do presépio, que apareceu em livro a partir da edição crítica de Contos Gauchescos e Lendas do Sul, de 1949, foi publicado, em primeira mão no final de 1913, no jornal A Opinião Pública, também de Pelotas. Segundo Carlos Reverbel, seu descobridor, seria o único de uma idealizada segunda série de contos gauchescos que nunca foi concretizada.
Com O menininho do presépio, são dezenove os contos gauchescos do escritor. Considera-se também o Artigos de fé do gaúcho, que mais se assemelha, em prosa, a Los consejos del Viejo Viscacha, de Martín Fierro, impregnado da melhor sabedoria crioula. Alguns dos contos de Simões, além de receber merecida versão em outros idiomas e integrar a lista de leituras obrigatórias em exames de ingresso para diversas universidades, tornaram-se indispensáveis nas antologias mais respeitadas do gênero. Trezentas onças, O negro Bonifácio, No manantial, Contrabandista, O boi velho já são consagrados pela habitual transcrição e pelo elogio dos estudiosos.
O prestígio popular e o reconhecimento dos críticos não foram conquistados graciosamente ou por acaso. Ao retratar com perfeição o ambiente gaúcho e a atmosfera campeira, o escritor mostrou rara habilidade no desdobramento das tramas psicológicas que envolveram suas histórias e personagens. Nada, entretanto, foi mais decisivo para sua notoriedade do que a requintada elaboração literária (o estilo) e a fiel reprodução do autêntico e despojado falar do habitante dos nossos campos (a linguagem). Tais ferramentas, cujo domínio exerceu de maneira inconfundível e incomparável, notadamente nos contos gauchescos, colocaram João Simões Lopes Neto entre os maiores escritores brasileiros, conferindo um caráter universal ao seu regionalismo literário. (FJLD)
Lendas do Sul
Em relação às Lendas do Sul, Simões Lopes Neto também contou com a imprensa pelotense para a divulgação inicial. A lenda do Negrinho do Pastoreio, segundo consta, foi a primeira, publicada em 26 de dezembro de 1906 no Correio Mercantil, jornal que na época pertencia a Augusto Simões Lopes, tio do escritor. A edição foi dedicada para Coelho Neto que, naqueles dias, viajava pelo Estado e estava em Pelotas.
No mesmo jornal, já com outra direção, em 6 de janeiro de 1909, foi publicada a lenda Boitatá, dedicada ao também escritor e advogado José Joaquim de Andrade Neves Netto. Das três lendas principais, apenas a da Salamanca do Jarau não apareceu em jornais da terra natal de Simões, somente na edição definitiva em livro.
Em 1910, como resultado de um intenso trabalho de pesquisa, recolhido na compilação de “poesia popular rio-grandense”, foi apresentado ao público o seu Cancioneiro Guasca. De certa forma surpreendente, mas elogiável, constam na obra algumas lendas, como Boitatá, Negrinho do Pastoreio, Generoso e “outros mitos do norte e centro do Brasil” (Lobisomem, Curupira, Jurupari, Caapora, Saci-pererê e Oiara).
Ostentando, mais uma vez, o selo editorial dos seus amigos da Echenique & C. Editores, em 1913 foi editado o livro Lendas do Sul, com o subtítulo de “populário”. Como novidade, além da inimitável versão da Salamanca do Jarau, o argumento de algumas lendas missioneiras como Mãe do Ouro, Cerros Bravos, Casa de Mbororé, Zaoris, Anguera (que é a mesma do Generoso), Mãe Mulita e Lunar de Sepé. Na obra, acrescentou, entre as que designou como sendo “argumentos de lendas do centro e norte do Brasil”, a Mula-sem-cabeça e a referente aos Enterros.
Ao escrever as lendas, que não são criações pessoais, João Simões Lopes Neto praticamente as reconstruiu, tomando a liberdade de fazer versões que lhe pareceram mais adequadas. Nessa recriação é que seu gênio literário aparece com mais exuberância. Por força de um estilo incomum e incomparável, ofereceu, para cada texto, uma feição própria, elegante e agradável.
O reconhecimento do seu talento e criatividade ultrapassou as fronteiras do país. Basta citar o chamado “Projeto Gutemberg”, hoje amplamente conhecido, destinado a veicular, em rede mundial, sem interesse lucrativo, grandes clássicos da literatura. Lendas do Sul foi a primeira obra literária, em idioma português, a ser integralmente divulgada, em 2001. Só depois, foi publicado Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões! (FJLD)
Casos do Romualdo
Na Revista da Academia de Letras do Rio Grande do Sul, em 1911, aparece O Gringo das Linguiças. Em 5 e 12 de julho e 9 de agosto de 1913, o jornal A Opinião Pública, de Pelotas, publica, respectivamente, A Quinta de S. Romualdo, Entre Bugios e A Enfiada de Macacos. Em folhetim do Correio Mercantil, também de Pelotas, são publicados, entre 1º de junho e 21 de julho de 1914, todos os casos, com o pseudônimo de João do Sul. Em livro, esses casos somente apareceram em 1952, pela Editora Globo, de Porto Alegre. Foram diversas edições, sendo a última do Instituto João Simões Lopes Neto, em 1914. (FJLD)