Apronta teu mate e fique por dentro do conto que será discutido no próximo encontro do Centenário de Contos Gauchescos, leitura agradável e divertida, sempre com o linguajar gaudério típico de nossa região. Nosso próximo palestrante é o Prof. Dr. João Luis Pereira Ourique, que ministra nesta quinta (30) a palestra intitulada “A desconstrução do mito: saga e sina em Batendo orelha”.
Contamos com sua presença, a partir das 19h no auditório Carlos Reverbel, localizado no Instituto João Simões Lopes Neto. Como de costume, a entrada é franca. Até lá e boa leitura!
Batendo Orelha
Nasceu o potrilho, lindo e gordo, filho de égua boa leiteira, crioula de campo de lei.
O guri era mimoso, dormindo em cama limpa e comendo em mesa farta.
Já de sobreano fizeram uma recolhida grande, sentaram-lhe uns pealos, apertaram-no pelas orelhas e pela cola e a marca em brasa chiou-lhe na picanha.
Andaria nos oito anos quando meteram-lhe nas mãos a cartilha das letras e o mestre-régio começou a indicar-lhe as unhas, de palmatoadas.
O potrilho couceou, na marca. O menino meteu fios de cabelo nos olhos da santa-luzia…
Em potranco acompanhava a manada e retouçava com as potrancas, sem mal nenhum.
O rapazinho rezava o terço e brincava de esconder com as meninas… o que custou-lhe uma sapeca de vara de marmeleiro.
Quando o potrilho foi-se enfeitando para repontar, o pastor velho meteu-lhe os cascos e mais, a dente, botou-o campo fora: fosse rufiar lá longe!…
O gurizote, já taludo, quis passar-se de mais com uma prima…; o tio deu-lhe um chá-de-casca-de-vaca, que saiu cinza e fedeu a rato!…
O potro andava corrido, farejando… Mas nem uma petiça arrastadeira d’água e poronguda, achou, para consolo da vida. Té que o caparam.
O mocito, que era pimpão, foi mandado incorporar. Sentaram-lhe a farda no lombo.
Mal sarou da ferida o potro foi pegado: corcoveou, berrou; quebraram-lhe a boca a tirões, dividiram-lhe a barriga com a cincha; quis planchar-se, e lanharam-lhe as virilhas a rebenque e as paletas a roseta de espora. Tiraram-lhe as cócegas… Ficou redomão.
O recruta marcou passo, horas, pra aprender; entrou na forma; agüentou descomposturas; deu umas bofetadas num cabo e gurniu solitária e guarda dobrada, por quinze dias. Cortaram-lhe os cabelos à escovinha e ficou apontado. Era o faxineiro do esquadrão.
Houve uns apuros de precisão… O rocim foi vendido em lote, para o regimento.
Tocou a reunir: era uma ordem de marcha, urgente. O faxineiro recebeu lança, espadão e tercerola.
Quando a cavalhada chegou o primeiro serviço dos sargentos foi assinalar os novos; era simples e ligeiro: um talho de faca na orelha, rachando-a. Bagual assim, virava reiúno.
Quando tocou o bota-sela, o faxineiro estava na porteira, de buçal na mão, esperando a vez. O laçador laçava, chamava a praça e esta enfrenava… e cada um roia o osso que lhe tocava.
– Chê! Enfrena!…
Foi o reiúno que caiu pro recruta.
Aí se juntaram os dois parecidos, o bicho e o homem. E a sorte levou os dois, de parceria, pelo tempo adiante. Curtiram fome, juntos, cada um, do seu comer, E sede. E frio. E cansaço, mataduras e manqueiras; cheiros de pólvora e respingos de sangue, barulho de músicas, tronar grosso e pipoquear, nas guerrilhas.
E de saúde, assim, assim… Um teve sarnagem, o outro apanhou muquiranas; se um batia a mutuca, o outro caçava as pulgas.
Quando, no verão, o reiúno pelechava, também o faxineiro deixava de sofrer dores de dentes.
Passados anos o mancarrão já nem engordava mais, e todo ovado estava. O fiscal do regimento, sem uma palavra de – Deus te pague – mandou vendê-lo em leilão, como um cisco da estrebaria. Um carroceiro comprou-o, por patacão e meio, com as ferraduras.
Passados anos o praça aquele teve baixa, por incapaz, com o bofe em petição de miséria; e saiu da fileira sem mais família e sem saber oficio. Saiu com cinco patacas, de resto do soldo, e sem o capote. Foi então ser carregador de esquina.
O reiúno apanhava do carroceiro, como boi ladrão!
Ocarregador levava dos fregueses descompostura, de criar bicho!
Oreiúno deu em empacar.
Ocarregador pegou a traguear.
O carroceiro um dia, furioso, meteu o cabo do relho entre as orelhas do empacador e… matou-o.
A policia uma noite prendeu o borrachão, que resistiu, entonado; apanhou estouros… e foi para o hospital, golfando sangue; e esticou o molambo.
O engraçado é que há gente que se julga muito superior aos reiúnos; e sabe lá quanto reiúno inveja a sorte da gente…
Texto: Paula Moran.